segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Darius Milhaud ou o esclarecimento

Confesso que, como amante de música antiga, ainda torço um pouco o nariz ao receber folders do Camerata Aberta e seus convidados de Paris. Não há ser humano que não tenha ao menos um preconceito - e, no meu caso, ele se ligava à chamada música contemporânea. Ora, se o meu ideal de mundo perfeito não corresponde ao mundo em que eu vivo, obviamente o de música perfeita também não corresponde... certo? Certo, mas... o que é música perfeita?

Meu professor de guitarra defende que a arte deve ser bela e agradável. Como ele diz, algumas músicas não são belas, mas são interessantes. Outras não servem nem pra pular. Concordo plenamente, e poderia começar a listar agora todas as que não servem nem pra usar o CD como porta-copo. Mas - e eu acho que em parte por causa da diferença de idade - nosso conceito de 'interessante' e 'belo' é diferente. Amo Vivaldi, mas também gosto de Arrigo Barnabé. Quem é belo?

Bom, ao menos de peruca, acho que Antonio Vivaldi ganharia o concurso (haha!). Mas como comparar coisas tão diferentes quanto, digamos, um Stabat Mater e Clara Crocodilo? E aí vocês me perguntam: mas você não disse que não gostava de música contemporânea?

Não estou aqui para definir o que é arte e o que não é, nem o que é beleza. Existe beleza na simplicidade, na complexidade; em uma letra de rap ou em uma ópera de Puccini. No entanto, na arte como em outras áreas, existem padrões considerados aceitáveis pelo público comum e outros que nem tanto. Qualquer pessoa reconhece a Gioconda como uma obra de arte, mas poucas (e aqui eu não incluo os admiradores de arte) reconhecem um Kandinski abstrato ou mesmo as colagens de Max Ernst. Mas, quando se deixa levar pela intuição, nem sempre se escolhe o que é considerado belo, ou bom. Quanto à música, no meu caso, me sentia um pouco culpada por gostar de obras que, para boa parte das pessoas, não eram nem ao menos arte.


'Lotus: Zone of Zero', instalação de Kimsooja em Bruxelas, 2008. Cortesia do site da autora.


Por isso volto ao início do post: ainda torço um pouco o nariz ao ver os folders do Camerata Aberta e seus convidados de Paris. É uma reação instintiva, automática. Em parte um pouco de raiva por não saber improvisar nem sobre harmonia tonal, confesso! Mas, quando resolvi buscar ouvir, sozinha, um dos compositores que fazem parte de seu repertório, descobri um mundo completamente novo, de sensibilidade e refinamento incríveis; poucas obras me provocaram uma reação emocional tão forte quanto as canções do ciclo Alissa, de Darius Milhaud.

Milhaud teria mais de cem anos se estivesse vivo; no entanto, suas músicas ainda são executadas por grupos de música contemporânea ou em concertos alternativos. É engraçado que mesmo os dodecafonistas, mortos, em sua maioria, no começo do século passado, ainda sejam considerados 'recentes'. São, quando se trata de história da música, mas assim parece que não temos compositores vivos. Enfim... onde estávamos?

Ah, sim: Darius Milhaud. Nascido em Marselha em 1892, morreu em 1974. Suas obras mais conhecidas são seus balés, como A Criação do Mundo (La création du monde, 1923), O Boi no telhado (Le boif sur le toit, 1919) e sua suíte de danças Saudades do Brasil, de 1921. No entanto, ele foi superprolífico, e escreveu mais dezenas de sinfonias, concertos, peças de câmara, óperas e arranjos das mesmas peças para instrumentos diferentes. Características jazzísticas e pitadas de Debussy são, ao menos para mim, o seu charme. Vale a pena lembrar que Milhaud era judeu e escreveu uma cantata fortíssima, Castelo do fogo, em memória dos judeus mortos na Segunda Guerra Mundial. (Infelizmente não achei vídeos.)

Primeira parte de 'Saudades do Brasil' pela Sinfônica da Unicamp


O ciclo a que me refiro, Alissa, foi escrito em 1913 e revisado em 1931. Conheci por acaso, comprando o disco sem nem saber do que se tratava, só por ver o nome 'Milhaud' na capa e lembrar que eu sempre tinha evitado ouvir qualquer coisa dele (lembra dos folders?). Baseado em trechos de 'A porta estreita', de André Gide, conta a história de dois primos - Jérôme e Alissa, ela sendo a mais velha - que fazem um juramento de amor quando ainda crianças; no entanto, a mãe de Alissa - tia de Jérôme - foge com um amante e ela, somando o incidente a um fanatismo religioso em desenvolvimento, passa a rejeitar qualquer forma de amor, apesar de ainda amar profundamente seu primo, que rejeitou o amor de sua irmã Juliette por acreditar que deveria se casar com ela. O enredo é bem mais comprido, mas enfim, falemos das canções.

A versão original de Alissa tinha mais de uma hora, e eu gostaria de saber como era. Milhaud, na época da  revisão (e já casado com sua prima, diga-se de passagem), a encurtou e, segundo suas próprias palavras, a tornou mais melódica. De fato, em poucos lugares ouvi tão bom uso de melodia e contraponto para criar atmosferas ou estados de espírito diferentes. As cartas e o diário de Alissa, onde ela demonstra seu conflito entre o amor que ainda sente por Jérôme e seus medos e bloqueios autoimpostos (pelos quais, em forma de doença, vem a morrer), são impressionantes. Me emociona muito a maneira como, em segundos, Milhaud consegue passar de absoluto desespero para o amor mais puro e sublime. A interação entre piano e voz - onde, às vezes, o piano é quem 'sente' o texto - também são espetaculares.

O ciclo de canções Alissa, bem como toda a obra de Darius Milhaud, foram para mim a prova de que a ignorância nunca vale a pena.

Disco do dia:

MILHAUD: Alissa, L'amour chanté, Poèmes juifs
Carole Farley, soprano
John Constable (sim, o cravista), piano

NAXOS
1992

Pode ser ouvido inteiro aqui no Spotify. Aproveite e ouça as outras canções que não incluí aqui, como o ciclo Amor cantado (minha tradução tosca de L'amour chanté), sua última obra para canto e a mais impressionista (apesar de eu não gostar desse termo) do disco, onde o lado trovador de Milhaud se revela em poemas de épocas tão distintas quanto o século XII e o XIX.
Boa semana a vocês! Me empolguei!

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