segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Ninfas do metrô ou como embelezar o mundo, por Josquin Desprez

(Esse texto é de maio desse ano.)

Se você vive no Hemisfério Norte, provavelmente está feliz com a primavera - pássaros que catam, zéfiros gentis et caetera. Mas se você vive no Sul, e esse é o meu caso, então é outono, e, ao menos aqui no sudeste do Brasil, as folhas e a temperatura estão caindo. Não chove aqui em São Paulo faz meses, mas aí é outra história.

Confesso que o outono é a minha estação favorita - a não ser que não pareça outono. É a estação dos cappuccinos, espressos e todas as outras bebidas com nome italiano e café. Também é a estação dos bolinhos de chuva, um dos meus petiscos favoritos - de preferência feitos por minha mãe em um dia chuvoso, mas benvindos a qualquer hora de qualquer dia.

E também é a estação da música. Mais propriamente, música renascentista. Nada é melhor do que ouvir as peças para alaúde de John Dowland ou Francis Cutting num dia nublado e melancólico de outono. Recomendo.

Mas esse ano meu coração foi conquistado por outro cara, e o nome dele é Lebloitte. Josquin Lebloitte. Não sabe quem é? Bom, ele também podia ser chamado de Jodocus Pratensis, ou Jossequin des Près, ou, ainda, Josquin Desprez - essa é a forma como ele é conhecido hoje em dia e, para mim, nenhum desses nomes traduz o GRANDE compositor que ele era. E, quando eu digo grande, quero dizer grande, grande mesmo.

Desprez foi um compositor belga nascido no fim do século XV (c. 1450). Ele morou na França e morreu lá, em 1527. Seu trabalho como compositor sacro e de corte é tão extenso que eu não tenho como abranger aqui, mas ele ficou mais conhecido por suas missas, motetos e canções. E há uma razão para isso - o cara entendia tanto e usava tão bem a voz humana que não soava apenas humana. As texturas e cores em sua música coral soam fantásticas, se não perfeitas. Depois de ouvir qualquer missa composta por ele, você com certeza vai querer entrar em um coral. (Eu fiz isso.)

Então, se você está preso no trânsito ou sendo espremido no metrô, essa é a trilha sonora perfeita. Olhe para as árvores e as nuvens enquanto escuta sua Missa Pange Língua, baseada em um hino de Santo Agostinho ('Cantai, ó língua, os mistérios da carne gloriosa...'). Cenas cotidianas, como crianças voltando da escola ou brigas de cachorro, ficam tão etéreas. Além disso, se você prestar atenção em cada linha melódica (que são muitas) em qualquer de suas obras, é uma viagem a outro mundo. Tentar encaixar cada parte em um pedaço da sua memória e depois transcrevê-las é um ótimo exercício para quem estuda música.

O que eu mais amo no Desprez são suas canções. Baseadas em poemas que ele mesmo ou outras pessoas escreveram (como o famoso Anônimo), falam de amor na maioria das vezes - amor perdido, amor impossível, amor desesperado, amor cozido, amor com fritas etc. Típico, afinal isto é a Renascença. Também típica de sua época é a pintura musical - fazer as palavras soarem como elas descrevem. Desprez era mestre nessa arte que produz resultados incríveis. Em Coeur langoreulx ('Coração pesaroso'), cada palavra de lamentação, como chorar, suspirar et caetera, soa como um lamento, em todas as vozes, de alguém cujo pesar só pode ser curado com amor. E, quando a voz principal canta 'rejouys toy, car ta belle maistresse/par sa pitié te veut donner liesse/joie et plaisir pour te reconforter', que quer dizer, aproximadamente, 'Regozija-te, pois tua bela senhora apiedou-se de ti e te dará a felicidade, alegria e prazer para te reconfortar', a música passa a ser feliz e esperançosa, confortavelmente resolvida em 'pour te reconforter'.

Prometo, não vou mais ficar falando. Em vez disso, deixo aqui uma playlist de Desprez para vocês.

Petite camusette, uma das minhas favoritas pelo Desprez na minha interpretação favorita pelo Ensemble Clément Janequin (perdão, Hilliard Ensemble, amo vocês também). Se você não entende francês, pelo amor de Deus, não procure a letra, que é muito besta.

Si congié prens Se eu me despedir de meus belos amores...
'Kyrie' e 'Gloria' da Missa Pange Língua
El Grillo. Uííííí, uma musiquinha feliz. Todo coro faz essa algum dia!
Douleur me bat A única música que eu conheço em que o eu-lírico pede para ser decapitado no final.
'Nymphes des bois' (Ninfas dos bosques), um lamento sobre a morte de seu colega compositor Johannes Ockenghem
Tenez moy en vos bras 'Segura-me em teus braços, amiga, estou doente, teu amor me curará.' É.


Esse é o Josquin. Ele não era lindo? Ou, ao menos, foi o que o retratista dele achou.
 
 
Tenha uma noite musical!

 

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